Meu caso de amor com as palavras começou desde muito cedo. Passei a enxergar nelas a possibilidade de me comunicar com o mundo, declarar meus sentimentos, usar minha criatividade, ter uma identidade. Lembro da primeira vez que escrevi o meu nome – era eu, ali, identificada no papel. Lembro dos primeiros cartões que emocionavam meus pais e amigos, mesmo contendo apenas poucas palavras ainda rabiscadas...
Pra quem sempre gostou de ouvir historias, não era difícil gostar de contá-las, escrevê-las. E o que começou com a básica narrativa, foi progredindo para formas mais complexas.
Durante anos e anos no colégio, somos apresentados à literatura e aos seus vários conceitos, estilos e funções. Fábulas, crônicas, contos... Assonâncias, aliterações, antíteses, metáforas... Conotações... Verso e prosa.. Rima e métrica. E a cada novidade que eu aprendia, mais eu me empolgava.
Minha primeira paixão foram os poemas. As rimas vinham fáceis. Nas noites sem sono, tudo virava inspiração: estrelas, saudades, amigos, livros... Mas, por algum motivo, me afastei da poesia; parei de escrever.
Na preparação pro vestibular, o que passa exigir nosso empenho e atenção são as redações. Precisamos seguir os padrões. Estruturação do tema, ter coesão e coerência, argumentar e sempre concluir brilhantemente, sem ultrapassar as 25 a 30 linhas. E o mais importante: aprender a fazer tudo isso de maneira impessoal, mesmo quando se defende o próprio ponto de vista.
Eu nunca compreendi muito bem como se podia estabelecer um numero de linhas se cada um tinha um tamanho de letra diferente. E, enquanto alguns colegas sofriam pra atingir a cota mínima, eu facilmente ultrapassava o limite delas; e sempre acaba fazendo contorcionismos pra tudo caber ali.
Páginas e páginas aprendendo a ser impessoal – usar apenas terceira pessoa ou no máximo a segunda pessoa do plural – o ‘eu’ não existe. Exige treino, esforço, controlar as palavras pra manter o tom jornalístico, fático.
A minha professora me dizia pra evitar os períodos longos... cheios de apostos [eternos parênteses dentro de parênteses...]. Às vezes eu não entendia porque, se me parecia que era necessário muito mais domínio para escrever frases bem elaboradas e ricas que curtos períodos. Comecei a aprender o poder das frases curtas – declarações diretas, mas, não menos belas.
Aprender a escrever sem ser identificado. Usar do masculino e nada de pronomes muito pessoais. Cheguei a perder ponto em uma redação porque usei o pronome “você” na conclusão de uma forma que a professora disse sugerir “tentativa de comunicação com o leitor” – que seria o corretor da prova, portanto, algo proibido no vestibular.
Aprendi a dominar a arte da redação. Mas algo me fazia falta.
Num ambiente onde eu me sentia reprimida, de repente os diálogos ficaram complicados. Não podia demonstrar algumas emoções. Não podia simplesmente chorar. Era difícil me expressar. Quase proibida de sentir. Percebi que haviam muitos sentimentos dentro de mim e que eles precisavam sair. Eu precisava me expor. Precisava me sentir reconhecida nas minhas palavras. Precisava registrar meus pensamentos. Precisava não me limitar. Precisava ser vista como indivíduo. Deixar subentendido não era suficiente. Senti falta de escrever. Me gritar, ainda que ninguém fosse ouvir. No papel eu podia ser eu; escrevia pra mim; meu diário de bordo.
Fugi das formas fixas e, por hora, abandonei a rima e a métrica, que às vezes me limitavam e nem sempre me deixavam dizer tudo que eu queria. [Admiro àqueles que dominam o desafio das formas fixas e conseguem dizer tanto em poucas linhas!] Me entreguei à prosa. Conscientemente tive que reaprender a ser EU. Abandonar o sujeito indeterminado e indefinido. Deixar de usar tudo no masculino. Esse último ponto foi especialmente difícil [e até hoje é] porque costumo dizer que meu eu-lírico é masculino; transcreve sentimentos humanos, que não se restringem a gênero.
Aos poucos, reaprendi a falar de mim e a, sem culpa, falar de nós. A conversar comigo e com quem lê [assim como fazia o escritor do meu livro de Historia que sempre fazia parecer que ele nos via, que imaginava o que passava pela cabeça do “amigo leitor”]. Me conto e gosto de ser pessoa, ser social, interagindo, despertando emoções, reflexões, atingindo o outro, ainda que nem sempre escreva pra um alguém com rosto. Às vezes fantasias, e eu sou personagens de historias que nem vivi, escrevo sobre sentimentos que eu mesma desperto em mim. Invento contos e crônicas. Escrevo pra mim. Escrevo pra aliviar. Escrevo pra esquecer. E é sempre pessoal, porque sou sempre eu, no que penso, no que temo, no que sinto ou imagino. E sempre que uso o “você” é pra realmente me comunicar com quem está lendo, pra estar mais perto, pra ser sempre pessoal, pra tocar, pra fazer sentir.
Voltei até mesmo a escrever poesias, muitas vezes sem rima ou métrica, apenas deixando levar pelo sentimento, pelo som, pelo ritmo. [Ah! Maravilha da poesia moderna, de textos quase concretos, tão próxima da música.] E passei a me sentir orgulhosa de mim, não por ser bom, mas por ser eu, até a última gota de tinta.
É com orgulho que hoje escrevo – com desinência verbal de primeira pessoa do singular. É uma conquista, um crescimento, um aprendizado. Talvez por isso me permito ser lida, comentada, criticada. E digo: me peça tudo, menos pra ser impessoal.
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Texto originalmente postado em Meu Lugar em 01/11/09
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